A chacina e a privatização dos presídios podem parar na Justiça Federal a qualquer momento

Segundo a Juíza Federal Jaiza Fraxe, podem ser ajuizadas ações sobre o episódio que está colocando Manaus nas notícias internacionais. A magistrada postou um artigo em sua rede social, e o Portal o repercute abaixo, pois expressa exatamente o que o Amazonas vive.

Cabeças, Direitos Humanos e Justiça: em busca da balança para equilibrar a segurança e a liberdade.

Recebi alguns pedidos para comentar a tragédia que está fazendo de Manaus a manchete mais dolorosa que podíamos ler sobre nossa cidade em todas as partes do mundo. Todavia, em razão da probabilidade alta de haver em muito breve uma repercussão judicial federal em face do lamentável episódio, seja através de ações civis públicas, de improbidade e ações populares, seja através de outras providências presentes no ordenamento jurídico, não emitirei opinião específica ou sobre fatos concretos.

Farei apenas um breve comentário histórico e acadêmico sobre a prática de decepar – remoção da cabeça de um adversário após este ter sido derrotado e morto em batalha – e as consequências no mundo pós-moderno. A retirada da cabeça de inimigos é um fato historicamente presente em várias civilizações. No século III A.C. no império chinês Qin, soldados decepavam a cabeça dos seus adversários vencidos e as amarravam na cintura como uma forma de aterrorizar e desmoralizar os oponentes. Na Nova Guine, a tribo Marind-anim usava machados afiados para arrancar a cabeça dos inimigos e assim controlar seus espíritos após canibalizar sua carne.

Na Europa, há teses de que os celtas também praticavam a caça à cabeças até o início da Idade Média. Para eles, essa parte do corpo tinha um importante significado ritualístico, de modo que os inimigos derrotados perdiam a cabeça que era amarrada em postes e portões. Contam ainda os historiadores que os povos indígenas Squaw , que habitaram a América do Norte por volta do século XVI, tinham como costume capturar os prisioneiros para em seguida realizar uma cerimônia ritualística que envolvia arrancar a cabeça usando afiadas facas de sílex. As cabeças em seguida pendiam em totens como troféus.

Portanto, a história nos revela que algumas civilizações do passado cultivavam práticas envolvendo a retirada das cabeças, não sendo o hábito desconhecido da literatura mundial.

Aliás, a crença no poder da cabeça está ligada ao pensamento mítico. Chevalier já disse que a cabeça possui um grande valor para vários povos, estando ligada ao princípio ativo e ao fato de governar, instruir, comandar. Ocorre que o pensamento mítico e a cosmologia em torno dos caçadores de cabeça nunca esteve tão oposta aos direitos humanos como na era pós-moderna.

Admitir nos dias atuais a habitualidade ou normalidade da prática de destroçar corpos e decepar cabeças a sangue frio desafiaria tudo o que pensamos sobre os direitos que visam a resguardar os valores mais preciosos dos seres humanos, em especial a solidariedade, a igualdade, a fraternidade, a liberdade e sobretudo a dignidade.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas afirma que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, dotados de razão e de consciência, e devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. A ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos com o objetivo de evitar guerras, promover a paz mundial e fortalecer os direitos humanitários. Quando há cumplicidade do país signatário para com a barbárie e a afronta aos direitos humanitários, o país pode responder à acusação grave perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, como aconteceu no caso Fazenda Verde (trabalho escravo).

Em caso de complacência com a afronta aos direitos humanitários, seja por parte de autoridades públicas constituídas , seja pelo cidadão comum, todos estarão alimentando um gigante sem controle. A história registra que toda tolerância à ruptura do estado de direito gera guerras incontroláveis. Sem precisar usarmos as guerras de ontem, basta recordarmos que antes do início do conflito na Síria, a população se queixava de um alto nível de desemprego, corrupção em larga escala, falta de liberdade política e repressão exacerbada. O resultado está sendo a morte terrível de milhares de pessoas, inclusive crianças, com transmissão online para o mundo ver e compartilhar, por meio de ‘smart fones’.

Esse total desequilíbrio entre ação e reação e as posições meramente binárias que são produzidas (concordo/discordo do conflito, acho que as pessoas bem que mereciam/desmereciam a morte) diante de tragédias fazem-nos esquecer o tema central: somos todos seres humanos e precisamos de segurança e liberdade.

Se não obtivermos o equilíbrio entre a segurança e a liberdade pelo bom senso e meios legais, garantido-se os direitos humanitários, a última esperança contra o caos ou a anarquia será sempre a Justiça, de onde rogamos venham as respostas de ontem, de hoje e de sempre: deve-se fazer a coisa certa e de acordo com o direito, a razão, a ética, a dignidade e a equidade, de modo a pacificar os conflitos e devolver o bem comum à sociedade, pois em “casa onde falta o pão e todos brigam, ninguém tem razão”!