Justiça como tecido social: entre o eu, o outro e os desafios da contemporaneidade 

Foto: divulgação/Wyden

Raimundo Fabrício Paixão Albuquerque 

A concepção de justiça, que outrora orbitava em torno do indivíduo e de suas prerrogativas legais, ganhou contornos coletivos no século XX, transformando-se em um imperativo social. Não por acaso: desde Aristóteles, que definia o humano como “animal político”, a filosofia insiste — nossa essência é relacional. Não sobrevivemos isolados, mas em redes de interdependência. Nesse sentido, a justiça só se realiza quando transcende o eu e abraça o outro, como lembra Emmanuel Levinas: “o rosto do outro que me interpela”. Sem alteridade, a justiça é mera ficção legalista.

O século XX, marcado por guerras e lutas por direitos, tentou institucionalizar essa noção. Declarações universais e constituições passaram a prever saúde, educação e moradia não como favores, mas como direitos. Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido, reforçava: “Ninguém liberta ninguém, os homens se libertam em comunhão”. Justiça social, portanto, não é caridade, mas reconhecimento de que nossa humanidade é coautora.

Contudo, o paradoxo da era digital expõe uma fratura: o mundo encolheu tecnologicamente, mas as subjetividades se afastam. Vivemos conectados por algoritmos, mas desconectados pela lógica do “cada um por si”, como descreve Zygmunt Bauman em Modernidade Líquida.

Aqui reside o drama contemporâneo: países que antes erguiam estandartes de direitos humanos hoje erguem muros. A União Europeia, nascida das cinzas do nacionalismo, vê ressurgir discursos xenófobos; os EUA, antiga terra do melting pot, estão inquietos com os imigrantes. Reforçando uma política de caça às bruxas contra os sonhadores de morar num país dito primeiro mundo.

O estrangeiro, outrora figura a ser integrada, tornou-se bode expiatório. Hannah Arendt, ao analisar o totalitarismo, já alertava: a desumanização do outro é o primeiro passo para a erosão da justiça. Quando transformamos pessoas em “ameaças”, reduzimos a política a um jogo de tabuleiro, onde vence quem exclui melhor.

Ao fechar os olhos para o outro, perdemos a chance de aprender com suas narrativas. A verdadeira justiça exige “diversos saberes”; é preciso um diálogo entre conhecimentos marginais (dos países emergentes) e hegemônicos. Porém, infelizmente, o colonizado é silenciado mesmo após o fim das colônias.

Não se trata de romantizar a alteridade, mas de reconhecer sua urgência prática. A pandemia escancarou: os vírus não respeitam fronteiras. Crises climáticas, fluxos migratórios e inteligência artificial são desafios globais que exigem respostas coletivas. Enquanto governos insistem em soluções isolacionistas, seguimos vulneráveis. Parafraseando Judith Butler, o luto por vidas perdidas no cotidiano de países “vizinhos” pobres deveria nos mobilizar a repensar o que é ser humano.

A justiça social do século XXI precisa ser, antes de tudo, anticapacitista. Não basta incluir o outro; é preciso desconstruir a ideia de que ele é um “fardo”. Os países dominantes, ao abandonarem outras nações em razão do protecionismo, caminham para fazer do dia mundial da justiça uma virtude egoísta, sem interesse naquilo que não é sua imagem no espelho.

Com isso, as turbulências globais que tentam se proteger através de políticas de fechamento de fronteiras serão apenas um paliativo que irá, no futuro próximo, eclodir em problemas sociais gravíssimos. A pandemia não veio para nos ensinar o distanciamento, mas sim para cuidar do outro, pois cuidando do outro, cuido de mim. Isso é justiça. Dar não apenas a si mesmo, mas incluir o outro nessa distribuição.

O caminho é árduo, mas óbvio: ou aprendemos a traduzir direitos humanos em políticas de acolhimento, ou seremos reféns de um mundo que, embora hiperconectado, definha em guetos afetivos. A justiça, afinal, não é um veredito, mas um verbo: ação contínua de estender a mão, mesmo — e sobretudo — quando o outro parece distante.

Raimundo Fabrício Paixão Albuquerque é advogado, psicólogo, filósofo, mestre em sociedade e cultura e professor dos cursos de Psicologia e Direito da Wyden.