A cada cinco mulheres, uma já foi estuprada, aponta Organização Mundial de Saúde

“Gostaria de dizer que gritei, que reagi, que bati. Eu sempre fui uma pessoa de personalidade forte e achei que se eu passasse por uma situação dessas era isso o que faria. Mas não fiz, não consegui. Eu fiquei chorando o tempo todo, pedindo para ele parar, eu não acreditava que aquilo estava acontecendo. Que meu amigo estava me estuprando”, disse Fabíola, 26 anos*. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma em cada cinco mulheres já foi estuprada antes dos 18 anos.

Depois de uma longa jornada de trabalho na organização de um evento, Fabíola convidou um dos amigos, um dos mais chegados, para tomar uma bebida em sua casa. Após algumas horas de conversa, a produtora relatou que foi surpreendida pelas costas com o amigo nu que, em seguida, a agarrou, a levou para o quarto e a estuprou em sua própria casa.

“Ele dizia que sabia que eu queria, que eu o provocava. Que ele queria ficar sozinho comigo desde o começo (do evento). E eu fiquei imaginando em que momento eu tinha feito algo que desse a entender isso. Mas ele estava viajando”, disse.

De acordo com a psicóloga e doutoranda em saúde coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Érica Rotondano, é comum as mulheres que sofreram com este tipo de crime não se sintam, inicialmente, vítimas do abuso sexual.

“Ela sente que pode ter sido culpada, porque é isso que a sociedade diz. Vide o caso do estupro coletivo que aconteceu no Rio de Janeiro. Quando você ouve os comentários das redes sociais tem sempre um: ‘ela quis’, ‘ela era culpada’, ‘também, quem mandou ela ir para a festa sozinha, né?’, ‘quem mandou beber?’, ‘quem mandou usar saia curta?’”, disse a especialista.

Fabíola disse que somente após uma semana da violência sexual se deu conta do que havia sofrido. Segundo a produtora, seis meses depois do crime, nenhuma denúncia foi feita à polícia.

“Eu pensei: Eu vou ter que contar essa história na delegacia, cheia de homens? Dizer que eu levei um homem para a minha casa, que ele era um amigo e que nós estávamos bebendo quando ele me estuprou? Eles vão rir de mim. E ele é o tipo de cara que todo mundo gosta, ninguém ia acreditar em mim”, disse.

Um dos motivos que levam as vítimas a não denunciarem o caso às autoridades policiais é o medo, segundo apontou a psicóloga.

“Há o medo, às vezes, você conhece o estuprador. Ele é um amigo, um colega de trabalho, de faculdade, um parente. Existe o medo da vingança, da retaliação”, explicou Érica Rotondano.

Superação

Para tentar superar o trauma, Fabíola saiu de Manaus e foi morar sozinha em outra cidade, mas ver fotos de amigos em que o agressor aparece livre e bem-sucedido já fez com que a produtora pensasse por duas vezes em tirar a própria vida.

“Até pouco tempo, não tinha contado para a minha mãe. Contei num momento de desespero, eu estava pensando em suicídio. Não consegui encontrar essa paz ainda. Já pensei em cometer suicídio duas vezes, porque achava que não tinha mais solução, para acabar logo com isso”, disse.

A superação do trauma é um processo lento, segundo a psicóloga, e sequelas psicológicas podem durar para sempre. “É uma ferida que vai ficar para sempre, não é da noite para o dia que vai parar de sangrar. O primeiro passo é se reconhecer mesmo como vítima desse processo e não como culpada, uma pessoa que deve ser punida porque provocou o estupro”, comentou a  Érica Rotondano.

O ato de denunciar também ajuda a frear a ação do agressor, segundo  a especialista. “Essa denúncia também vai ajudar outras mulheres a passar por essa situação. É uma luta coletiva, de todas as mulheres. Denunciando, você está impedindo que outras passem por essa mesma situação. Buscar o que te faz bem um hobby, um trabalho, os amigos, até a própria terapia”, disse.

Atriz finge estar bêbada e é assediada por homens

Segundo a psicóloga, é comum, principalmente, em festas universitárias os abusadores se aproveitarem do estado de embriaguez das jovens. “A mulher sob o efeito de álcool e drogas se tornaria uma presa mais fácil. Tanto que isso é muito comum em festas dentro de universidades”, afirmou.

Em 2015, a rede de televisão BBC acompanhou um experimento do Centro Europeu Neurosaulus, sobre assédio sexual em um vídeo de 10 minutos, filmado no centro da capital espanhola. Feito em um dia de semana, em plena luz do dia, uma atriz fingiu estar bêbada e foi assediada, por homens que, segundo a emissora, “não hesitam em tentar se aproveitar da vulnerabilidade causada pelo álcool”.

O experimento foi coordenado pelo psiquiatra José Miguel Gaona, conforme a emissora, a gravação teve que ser interrompida depois que o assédio cresceu de intensidade a ponto de a equipe de filmagem temer pela segurança da atriz.

Além de ouvir cantadas, a atriz por vezes foi levada para locais mais discretos, em que homens tentaram beijá-la à força ou apalpá-la. E, em pelo menos, uma ocasião, apesar de a mulher mencionar a intoxicação com o álcool, tentaram lhe dar mais bebida.

CCJ aprova proposta para tornar crime de estupro imprescritível

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou, no último dia 5 deste mês, o relatório da senadora Simone Tebet (PMDB-MS), favorável à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 64/2016, que torna imprescritível o crime de estupro, o que significa que a qualquer tempo o agressor pode ser processado e punido pelo crime que cometeu.

A PEC ainda precisa passar por votação no plenário e ser aprovada por três quintos dos senadores, em dois turnos de votação. Se aprovado no Senado, o texto é encaminhado para a Câmara dos Deputados.

O autor da PEC, senador Jorge Viana (PT-AC), lembrou que o estupro é crime hediondo e inafiançável, e defendeu que se torne também imprescritível. Viana citou dados que mostram que mais de 70% das vítimas de estupro são menores de idade e que os agressores, em sua maioria, fazem parte do círculo de convivência do menor, o que dificulta a denúncia imediata do crime.

Na justificativa da PEC, o senador incluiu estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que estima que ocorram no Brasil, por ano, 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados e, destes, apenas 10% seriam reportados à polícia. “A subnotificação dos crimes de estupro ocorre devido ao receio que as vítimas têm de sofrer preconceito, superexposição ou serem revitimizadas”.

“Estamos lidando com algo que tem muito de invisível. As organizações da sociedade, os órgãos públicos e todo o aparato policial não conseguem alcançar sequer a cifra relativa ao número de estupros em nosso País, mas nós, no Brasil, disputamos os primeiros lugares no mundo”, disse Viana.

Ao  apresentar parecer favorável, a relatora da PEC, Simone Tebet, argumentou que não é possível prever o tempo de que a vítima precisa para conseguir reagir ao trauma sofrido e ser capaz de buscar reparação judicial. “Por onde quer que analisemos o crime de estupro, sua denúncia e punição, encontramo-nos sempre às voltas com a questão do lapso de tempo. Porque é esse lapso de tempo que fertiliza a impunidade, e é essa impunidade que se pretende combater, ao tornar o estupro, como hoje é o racismo, um crime imprescritível”.

*O nome da vítima, idade e profissão foi alterado a pedido da entrevistada.